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Madrugadas de vergonha
Não sei se acontece a você lembrar-se de coisas que fez e das quais restou alguma vergonha. Isso em geral ocorre em meio às madrugadas, naquelas horas em que se perde o sono e todos os problemas parecem insolúveis.
Você abre os olhos e observa o escuro. Sabe onde está, conhece todos os detalhes do lugar e é capaz de se levantar e movimentar-se sem bater em nada. É o seu quarto, a escuridão o protege, é só agir instintivamente e isso é tudo o que interessa.
Está assim, pensando em dormir logo porque tem que se levantar cedo, há muito a fazer ao longo do dia. Você repassa compromissos, não consegue pegar no sono, vai à cozinha bisbilhotar os armários para ver se encontra uma guloseima que o satisfaça.
Madrugadas são períodos neutros, depois que se acorda encontra-se certo prazer em estar de atalaia, como se de algum modo coubesse aos insones a missão de tomar conta do mundo enquanto os outros dormem.
Você come alguma coisa, volta para a cama sem fazer barulho, deita-se, segura a cabeça com as mãos, fecha os olhos e passa a rever cenas que presenciou em seu cotidiano. O interessante é que as lembranças são regressivas, há um recuo no tempo. É desse modo que pessoas e fatos distantes retornam até parar numa situação insólita, algo que se fez e melhor seria esquecer, alguma coisa nem sempre importante que agora parece enorme, daí causar certa vergonha.
Pode ser qualquer coisa, desde uma festa de noivado em que você era o noivo e não compareceu ou o jeito de livrar-se de pessoa incômoda sobre quem perdeu o interesse. Isso para não falar nas ocasiões em que você saiu de fina, fingiu não saber de alguma coisa ou disse algo fora de contexto como os parabéns, num cemitério, a um amigo que acabara de enterrar a mãe. Distração, pura distração, maldita distração.
Tudo isso retorna com força, como se o cérebro houvesse adormecido fatos por longo tempo para devolvê-los intensamente, fazendo-o reviver em toda plenitude momentos há muito vividos e sabiamente soterrados nas masmorras da memória.
A partir daí não existe muito a fazer. Você cobre a cabeça, encolhe-se, esforça-se para pensar em outro assunto. Às vezes desiste, acende a luz, liga a televisão e aguarda sentando na cama o sono enquanto assiste a um filme sem sentido porque começou a vê-lo no meio da exibição.
No meio dessa tragédia o consolo possível é já não ter contato com as pessoas envolvidas nos fatos que relembra. Há casos em que os envolvidos estão mortos e você é a única testemunha que resta do acontecimento que tanto o incomoda. Então percebe que sente vergonha de algo que positivamente deixou de existir: é de pessoas mortas que você tem tanta vergonha.
Você está assim, olhando para a televisão sem prestar atenção quando as suas pálpebras enfim pesam e finalmente dorme.
Manhã seguinte, você acorda, no banho recorda de seus pensamentos durante a madrugada: tudo bobagem, ninguém dá satisfação a mortos e desaparecidos, há um longo dia pela frente em meio a uns chatos, todos eles muito vivos e atuantes.
PS: o noivado de um amigo, desfeito por ele sem maiores explicações, inspirou esse texto. Contou-me ele ter vergonha da moça e seus familiares, do modo como tomou a decisão. Relatou-me acordar às vezes, no meio das madrugadas, sentindo vergonha. Isso acontecia de vez em quando, passados muitos anos do acontecimento após o qual nunca mais reviu a ex-noiva, pessoa que classificava como excelente.
Esse meu grande amigo morreu tragicamente há alguns anos. Lembro-me dele nesta madrugada em que não tenho sono e penso na sua tremenda vergonha da qual, segundo me dizia, jamais se livrou.