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Verônica chorando
A liturgia da semana santa parece ter perdido muito do impacto de anos atrás. A sacralidade, o envolvimento dos fiéis e a própria fé cederam lugar a representações que parecem carecer da antiga convicção.
Verdade seja dita, nos interiores do Brasil, em pequenas cidades, a teatralidade que representa o martírio de Jesus mantém-se viva, embora também tenha perdido algo de seu anterior colorido.
Em criança a cena da semana santa que mais me impressionava era a de Verônica desdobrando o véu no qual está impressa a face de Jesus. Como se sabe através do texto bíblico, a Verônica é atribuído o ato de limpar o suor de Jesus durante o seu calvário. Desse fato deriva a presença de Verônica na procissão da semana santa: há um momento em que as pessoas param de andar e Verônica emerge, desdobrando o véu enquanto entoa um canto fúnebre.
Esse canto dolorido e profundo, expressão de uma dor incontida, aterrorizava-me em menino. Creio que essa impressão era ampliada pelo fato de eu conhecer a mulher que assumia o papel de Verônica. Era ela pessoa entristecida, soturna dentro da solteirice que perdurou até a sua morte. Trazia estampada no rosto uma espécie de interrogação sobre a sorte que a ela foi madrasta. Era esse lado trágico da existência dela que transparecia em toda a sua magnitude no momento em que a procissão parava e ela iniciava a sua representação com a face coberta por um véu preto. Naquele momento não se podia vê-la, mas era possível imaginar as contrações dos músculos faciais de um rosto que jamais fora bafejado pela beleza. Era dele que vinha aquela voz aguda e lamentosa que chorava o calvário de Jesus.
Anos mais tarde, voltei à cidade onde morei quando menino justamente durante a semana santa. Na noite de quinta-feira assisti à passagem da procissão e presenciei o momento em que Verônica fazia a sua parte. Era uma Verônica de voz solta, quase alegre, pelo jeito uma moça que se desincumbia do papel apenas como atriz. Na ocasião perguntei a um amigo sobre a antiga Verônica, aquela do canto triste. Ela me contou que ela morrera há alguns anos sem se afastar um só milímetro do perfil que sempre apresentara. Relatou-me o amigo que os que a conheciam sabiam do sofrimento real dela durante a semana santa. Passava ela a quaresma a preparar-se para o dia em que encarnaria a Verônica dos evangelhos. Então chorava muito como que tomando para si toda a dor representada na liturgia.
- Chorava sim. Imagine que chorava enquanto cantava com o rosto protegido pelo véu. Mas, sem dúvida ela foi a melhor das nossas Verônicas.
O meu amigo disse isso e se afastou, deixando-me imerso numa atmosfera nostálgica que sempre retorna na semana santa quando me lembro daquela face triste sob o véu escuro, entoando uma melodia fúnebre que parece não ter fim.