Arquivo para ‘vida longa’ tag
Vida longa
p { margin-bottom: 0.25cm; direction: ltr; line-height: 120%; text-align: left; widows: 2; orphans: 2; }
Um conhecido, autoridade do Judiciário e hoje aposentado, certa vez me confessou ser o seu barbeiro - ele dizia “barbeiro” e não “cabeleireiro” - a pessoa que talvez soubesse mais sobre a sua vida. Mais que a minha mulher - acrescentou.
De fato as relações que mantemos com os “barbeiros” são incomuns. Talvez a cadeira onde nos sentamos para o corte tenha algo de mágico porque depois de algumas visitas ao profissional a intimidade se instala. Sei, por exemplo, de detalhes da vida de meu “barbeiro” que, certamente, ele confia a poucas pessoas. Por outro lado já contei a ele particularidades pessoais que nunca abri a ninguém. Pode-se estranhar o fato, mas é muito comum – acredite.
Outro lugar que se presta bem a confissões é a mesa de bar. Reunir-se com um amigo num bar para uns goles pode resultar numa curiosa troca de informações sobre as mais escabrosas aventuras. Não há lugar onde a confiança mútua entre bons amigos se revele tão intensa como numa mesa de bar.
Há pouco tempo fui almoçar com um amigo que insistia muito em me rever. Conversamos sobre tudo. Entretanto, houve um momento em que ele se mostrou muito sério e reflexivo. Perguntei se dissera a ele algo inconveniente. Responde-me que não. Na verdade nos últimos tempos vinha se digladiando com sensação ruim da qual não conseguia se livrar. Contou-me que desde dois meses antes de nosso almoço sofria ao ver as pessoas com quem cruzava na ruas. Não entendi bem e perguntei se não estaria ele sofrendo da tal “dor do mundo”. Tem gente que carrega nas costas a “dor do mundo” e sofre por isso. Dizem que Glauber Rocha era assim, não sei se verdade.
Meu amigo arriscou meio sorriso e negou sentir a tal ‘dor do mundo”. Relatou-me que com ele acontecia ver pessoas vivas e imaginá-las mortas. Topava com alguém, observava o rosto da pessoa e já compunha o quadro dela morta, dentro do caixão, coberta com flores, terço nas mãos imóveis. Ora, isso tirava a graça do mundo - disse ele. Pensar a todo instante na precariedade da vida, saber que aquela moça tão cheia de força e beleza estaria morta um dia, vê-la dentro do caixão, observar a face sem vida, isso era demais. A vida perdia o encanto. Estávamos todos condenados. A vida nada mais era que uma grosseira simulação de fatalidades inevitáveis.
Não soube bem o que dizer ao meu amigo. Lembrei-o de que já não éramos jovens e, talvez, a maior proximidade com a possibilidade da morte o estivesse afetando. No fim notei que meus argumentos naufragavam diante de realidade sobre a qual o melhor para os vivos é nem pensar.
Quando nos despedimos desejei vida longa ao meu amigo. Ele sorriu, deu-me um abraço e partiu. Fiquei um tempo parado vendo-o afastar-se. Lá ia ele matando as pessoas a quem encontrava nas ruas, reduzindo-as a cadáveres dentro de seus esquifes, apartadas precocemente desta vida nem sempre prazerosa, mas à qual nos agarramos tanto.